– Então, você ouviu a música que eu te mandei?
– Ouvi sim. Pra falar a verdade, ando escutando ela todos os dias.
– Ela é linda, não é? Marcou bastante a minha vida…
– É esquisito.. Nem sei explicar o que eu sinto quando eu escuto ela. Dá um aperto no peito que é bom e ruim ao mesmo tempo… uma vontade de chorar…
– É o que eu chamo de desespero nível 3.
– Aquele mesmo que você sentiu quando saiu correndo de mim?
Flávia corou.
– Cheio de engraçadisses, né?
– Foi ou não foi?
– Não vou dizer.
– Já disse – sentenciou Fernando, triunfante.
– Você adora me deixar sem graça, né? – Por baixo da mesa Flávia crispava as mãos.
– Gosto sim. Não tenho porque mentir! – assentiu Fernando, enquanto pegava no prato um sushi de salmão. – Eu espero que você goste mesmo de sushi tanto quanto você diz que gosta.
– Pois eu adoro! Se eu pudesse comia peixe cru todos os dias! – respondeu Ana Flávia – Uma vez eu levei minha avó pra comer sushi comigo. Ela olhou pra comida e disse “mas tá cru, minha filha!” E eu “mas vó, é por isso que é delicioso!!!” as últimas palavras saíram misturadas a gargalhadas e gestos no ar.
Comer sushi sempre deixava Ana bastante feliz, mas ela sabia que não era somente o peixe cru o motivo de seus risos em demasia. O outro era aquele cara, que parecia se divertir horrores com seus devaneios, seus arroubos, com suas histórias esquisitas e sua falta de memória, que não podia sequer ser chamada de memória seletiva, pois era bastante democrática. Ela esquecia datas, nomes de pessoas, onde botava suas próprias coisas (o que a fez adquirir o hábito de colocar as coisas sempre no mesmo lugar), telefones, compromissos, idéias, coisas a fazer… Quem a conhecia um pouco melhor sabia que era melhor nunca esperar que ela se lembrasse de algo.
Só havia duas coisas que Ana Flávia sempre guardava na memória: Sensações e sentimentos.
Era uma tarde de sexta-feira quando Fernando a ligou pela primeira vez, depois de várias conversas por MSN e de uma ou duas saídas em comum com amigos. O convite foi simples. Nenhum programa homérico. Ele só dissera que estava pensando em tomar um café e perguntou se ela gostaria de ir junto. E ela, surpreendentemente, topou sem pensar muito.
O ambiente era bastante simples e aconchegante. Ele pedira um café forte com chantily, e ela, que não gostava de café, pediu um chocolate quente, fazendo graça do próprio paladar de criança. Ele respondera apenas que jamais censuraria alguém por gostar de chocolate. Fez uma ou outra sugestão sobre o cardápio e depois dissera que sempre costumava frequentar aquele lugar quando queria ler ou pensar na vida. A referência a leitura encaminhou o assunto para os livros, e os dois descobriram que tinham sim muitos livros preferidos em comum, apesar das discordâncias do primeiro encontro. Descobriram também que gostavam das mesmas músicas, e depois que pensavam a mesma coisa sobre vários outros assuntos. Gostavam de teatro, de poesia e de RPG, embora ela adorasse elfos e ele os achasse um pouco afeminados demais, o que rendeu várias discussões acaloradas posteriormente.
A parte mais demorada do encontro foi dentro do carro, numa praça, onde pararam para comer alguma coisa. Conversaram sobre os mais diversos assuntos, embora o assunto preferido dele fosse ela. Os seus gostos, seus pensamentos, suas idéias. Ela se pegava respondendo sem nenhuma vergonha, e ele continuava ali, contemplativo, por vezes quase melancólico. E era dessa mesma forma que falava sobre si mesmo. Depois de mais de duas horas de conversa, se despediram com um abraço e um beijo. E Ana entrou em casa feliz. Muito feliz.
E no outro dia se falaram de novo por MSN, quase uma tarde toda. Ela ria em frente ao computador como se fosse uma criança. Ele disse que gostava de artes marciais japonesas, e ela respondeu que dos japoneses o que mais gostava era o sushi. Ele se animou e disse que conhecia um lugar ótimo, e perguntou se ela não queria ir junto com ele. E mais uma vez, antes que pudesse pensar, Ana aceitou.
Foram várias vezes juntos comer comida japonesa, e como antes sempre passavam horas conversando dentro do carro. Flávia percebeu que adorava estar com ele. Fernando era inteligente, culto e divertido. Demonstrava uma imensa segurança de si mesmo e uma tranquilidade que parecia encher o ar. Mesmo quando ela, aos próprios olhos, parecia infantil, ou quando fazia algo que, aos seus olhos, irritaria qualquer homem, ele apenas mostrava um sorriso largo e brincava com a situação, e então ela se sentia estranhamente muito mais menina e, ao mesmo tempo, muito mais a vontade consigo mesma e com ele.
A coisa começou a preocupar Flávia quando ela percebeu que ele a lia demais. Mesmo ela sendo tão transparente como só uma ariana podia ser, mesmo ela, suspresa consigo mesma, não fazendo questão de esconder muitas coisas, aquilo era demais. Ele parecia compreendê-la como se pudesse ouvir seus pensamentos. E o pior: Por mais que, por medo ou por vergonha, a assustasse se sentir às vezes um livro aberto, gostava disso. E tinha medo de gostar demais. Não queria se envolver. Não naquele momento. Não era a hora. Ainda restavam muitas feridas. Entretanto, a vontade sempre falava mais forte e ela sempre aceitava um novo convite da parte dele.
Ele não caía aos seus pés, não a abordava, nem elogiava em demasia (quando o fazia sempre arrancava sorrisos que Ana tinha pavor que ele percebesse que eram de vergonha). Às vezes ela chegava a duvidar quais seriam as reais intenções de Fernando. Quando ela esperava que ele fosse encaminhar as coisas para um flerte, ele a surpreendia. E ela não sabia se ficava aliviada ou desapontada. Quando ela tinha alguma atitude que demonstrasse desinteresse, e esperava que ele transparecesse desapontamento ou algo do tipo, ele simplesmente sorria. Só continuava ali. Conversando, rindo, tendo idéias sempre interessantes e a convidando de novo para um café ou um sushi. E o conflito dentro de Ana crescia cada vez mais. Desejava tê-lo por perto, embora tivesse medo de se apaixonar. Ansiava por um gesto que transparecesse interesse em algo mais, embora tivesse medo de sua própria reação se isso acontecesse.
Até que um dia, no momento de se despedir, o abraço demorou um pouco mais do que o habitual, e ela sentiu um leve carinho em seus cabelos. Dentro do seu peito algo pareceu queimar, e aquele calor, junto da sensação de segurança e aconchego que aquele homem transmitia, inundou sua alma, e a fez querer ficar. Subitamente ela o afastou, quase grosseiramente, se despediu e saiu do carro, para logo depois se sentir culpada, e ter medo que ele se afastasse. E quando pediu desculpas, ele apenas sorriu e disse que não sabia do que devia desculpá-la.
Nesse momento ela soube: Estava apaixonada. Como iria lidar com isso, o que iria fazer, tudo isso era detalhe. Mas era bobagem ignorar o óbvio ululante de que desejava intensamente a sua companhia, o seu sorriso, os seus braços e a sua voz.
E como não era de negar para si mesma seus próprios sentimentos e vontades, estava ali. Mais uma vez com ele. Sem pensar muito. Sem questionar. Apenas sentindo a paz e a calma que a presença dele trazia ao seu coração.
– Você trouxe o violão?
– Sim. Tá lá no carro.
– Acho que você não deve gostar muito do fato de tirar o carro da garagem quando saímos.
Fernando transpareceu um falso ar de resignação.
– Bom, o que posso fazer? Não cabem dois mais um violão numa moto! Como eu iria cantar a sua música preferida? Promessa é dívida!
Ana Flávia riu. Há alguns dias ele havia gravado um trecho da música preferida dela no violão e enviado pelo MSN. Ela se derreteu. A voz dele era linda. Quase o xingou pela baixeza do golpe, mas pediu para que ele tocasse ao vivo.
– Eu gostei da gravação que você fez.
– Que bom que você gostou. Adoraria ver sua cara de envergonhada e o seu sorriso na hora que ouviu.
– E como você tem tanta certeza assim que eu sorri? – ela perguntou, semicerrando os olhos. Fernando demorou um pouco pra responder, para dizer então, num tom de voz baixo.
– Não tenho não. Mas gosto de imaginar que do outro lado do computador você estava sorrindo.
Flávia corou, constrangida. sentiu de novo o coração queimar dentro do peito. Não sabia o que dizer.
– Às vezes eu acho que você não tem juízo algum, sabia?
– Você ainda tem alguma dúvida? Eu sou advogado, ando de moto, leio gibi, sou nerd, faço tudo que é errado nessa vida… Acho que isso já tava meio óbvio – disse Fernando, entre um sorriso tranquilo. Flávia sorriu de volta. Adorava aquele senso de humor sarcástico.
– Não é isso.
– Então o que é?
Dessa vez foi a vez de Ana demorar alguns instantes para responder.
– Porque você está botando seus dedos no fogo.
Fernando se inclinou na mesa e disse em tom de confissão.
– E você acha que você está de frente pro que? Pra uma estrada de ladrilhos bonitinhos?
Flávia balançou a cabeça.
– Eu não penso isso, querido. Eu simplesmente vou – disse ela, mais para si mesma.
– Justamente. E esse é um dos motivos pelos quais estou aqui.
A afirmação atiçou a curiosidade de Ana Flávia. Ela não podia mais conter as palavras.
– Um dos?
– Quer saber os outros?
Ela olhou firme em seus olhos.
– Quero.
– Você me diz os seus depois?
– Isso é uma barganha, doutor? – Flávia respondeu, em tom de desaprovação. Fernando devolveu com uma expressão e tons sinceros, disfarçados pelo humor.
– Não, minha princesa élfica. Isso é uma troca.
Ana Flávia mais uma vez não teve como discordar.
– Advogados. Cortem-lhe as cabeças. Você diz primeiro.
Ele respondeu, enquanto a olhava de uma forma diferente. Mais decidida. Mais forte. Mais profunda
– Só há um motivo pelo qual estou aqui agora: Você.
Flávia queria mais. Queria saber mais. Queria ouvir tudo que ele tinha a dizer. Tudo ao mesmo tempo.
– Você está sendo invasivo.
– Não estou não. É só você ouvir da maneira certa – Fernando disse em tom de voz baixo.
Flávia entendeu a profundidade daquelas palavras. E, naquele instante, algo dentro dela se despedaçou, como uma vidraça atingida por uma pedra pesada. O brilho em seus olhos se intensificou.
– Minha vez?
– Claro.
As palavras saíram da boca de Flávia sem que ela quase pudesse sentir que as pronunciava.
– Eu estou aqui porque sou muito melhor quando você está perto.
Fernando fez ar de surpresa.
– Sério?
– Sim. Todas as vezes. – Flávia abaixou os olhos, como que dizendo pra si mesma – Fico espantada que meus defeitos não te incomodem, que te façam rir, que você não se importe com minha falta de memória, e com minha arrogância eventual.
– Quer saber minha opinião?
– É claro.
Fernando assumiu novamente um olhar contemplativo.
– Você não é arrogante. Aliás, deve odiar arrogância. Na verdade, eu demorei um pouquinho pra descobrir uma coisa que você já sabe: Que o que muita gente chama de humildade é auto sabotação. Humildade é outra coisa. A gente tem mesmo que se ver sempre como o melhor que podemos ser, e buscar isso. Isso não é arrogância. E além do mais…
Flávia apenas levantou a sobrancelha, ansiando pelo resto da frase. Fernando abaixou o tom de voz e olhou fundo nos olhos dela, com doçura e sinceridade:
– Eu sei que por detrás dessa força toda há uma menina frágil.
Flávia sentiu um aperto no estômago.
– E eu gosto muito dela.
Os dois ficaram parados, um olhando nos olhos do outro. Ana se sentia como uma criança. Era como se ela fosse incapaz de machucar aquele homem. Ele era forte, era seguro. Era sim tudo isso. Mas havia algo mais.
Ela tinha medo. Medo que as palavras ditas ou que suas atitudes se tornassem navalhas. Não queria mais machucar alguém querido. Não queria mais agir infantilmente. E não queria mais ser abandonada, fosse por seu ímpeto pela vida não ser acompanhado, ou – pior – por machucar alguém enquanto andasse do lado dessa pessoa.
Mas aquele homem… Ele fazia com que ela se sentisse muito mais bonita. Muito mais forte. Muito mais segura. Bastava uma palavra, um olhar, ou às vezes apenas que ela pensasse nele, para que ela visse a mulher que ele enxergava. Uma mulher forte, decidida, e ao mesmo tempo uma menina frágil que – sabia ela – sempre teria o ombro dele para se apoiar. E ele era forte. Ele aguentaria. O mundo poderia se dobrar, mas ele não. E ao lado dela – ela também sabia – teria as forças para não se dobrar também. Teria forças para conquistar o mundo.
Quando seus próprios véus se rasgavam, Ana Flávia tinha medo que por detrás deles encontrasse uma garota imatura, pedante, infantil e fraca. Mas aquele homem havia chegado, e, antes que ela pudesse dizer não, tinha rasgado aqueles véus, e feito com que ela visse por detrás deles algo surpreendente: A mulher que ela sempre quis ser, e que agora sabia que era.
Ele tocava em suas mãos, e mostrava delicadeza onde ela via rudeza. Mostrava firmeza de caráter onde ela tantas vezes enxergava obtusidade. Mostrava espírito forte onde ela tantas vezes vira ingenuidade. Mostrava feminilidade onde ela às vezes vira fraqueza. Mostrava uma felicidade e uma alegria que havia ouvido tantas vezes – e acreditado – que ela jamais alcançaria.
Era como se mesmo o ar que havia entre eles tivesse desaparecido. O silêncio e eles dois pareciam as únicas coisas existentes. ele a fitava como se nada no mundo fosse mais importante do que ela, e ela sabia disso. E sorriu demonstrando a satisfação de ter aquela certeza. Sorriu sem véus, sem fingimentos e sem medos. Como há muito não sorria.
Sem dizer nada eles se levantaram para pagar a conta. Ele foi na frente, chamando o garçom. No meio do caminho um impulso tomou o coração de Ana. Um impulso que ela não podia resistir, nem mais queria. Se aproximou dele por trás sem que ele visse, segurou delicadamente seus braços e pousou o queixo suavemente em seus ombros. Queria se aninhar neles. Queria que ele soubesse disso. Queria que ele a tomasse pelas mãos e a guiasse, que mostrasse a ela as suas verdades. Queria ver nos olhos dele a mulher que agora ela tinha a certeza que era.
Queria tudo isso, e muito mais. Agora, e ao mesmo tempo.