O Aikido, A.K.A. o caminho do amor

Sempre fui adepto de artes marciais. Treino desde os meus 16 anos, passei por vários estilos e todos eles me marcaram de alguma forma. Pratiquei alguns anos de boxe tailandês, vários anos de hapkido (e outras artes marciais coreanas a reboque) e tive uma breve passagem pelo jiu jitsu.

A maioria das artes marciais possuem como pressuposto a existência de um adversário a ser derrotado, bem como várias técnicas destinadas a fazer isso, com maior ou menor contundência. E é por isso que o aikido me pareceu tão estranho a princípio. Como assim? Uma arte marcial na qual não há lutas, não há competição e não há adversário?

Outra coisa que sempre me chamou no aikido é a quantidade de literatura a respeito dos fundamentos teóricos, práticos e filosóficos. Isso não se encontra em quase nenhuma arte marcial.

Morihei Ueshiba, o criador do Aikido, é conhecido até hoje como um dos homens mais espiritualizados que o Japão já conheceu. Até hoje, várias décadas após sua morte, é tratado como O’Sensei (o grande mestre).  E isso não é só entre os praticantes de Aikido. Pode ir a qualquer academia de qualquer arte marcial no Japão. Todos sabem que Ueshiba Sensei é o grande mestre. Mas por que?

O Séc. XX como um todo foi muito difícil para o Japão. Foi o século da queda do regime feudal, foi o século no qual houve o primeiro contato deles com as culturas européias e americanas, foi o século da segunda guerra mundial, foi o século de duas bombas atômicas… Tudo isso influenciou a cultura japonesa de uma maneira muito forte. Uma cultura milenar, refinada, arraigada em bases antiquíssimas, e que de repente se viu bastante anacrônica diante do mundo que se apresentava diante deles.

Um dos aspectos culturais do Japão que não resistiu à modernidade foi o Bushido, o caminho do Samurai. Embora ele fosse um caminho de vida bastante refinado e que acabava por formar não só um guerreiro, mas também uma pessoa culta e de caráter inabalável, Basicamente os samurais continuavam sendo guerreiros medievais vassalos de um senhor feudal, coisa que a Europa já tinha deixado pra trás no mínimo há um século.

A situação se agravou muito mais com a descoberta das armas de fogo pelos japoneses (o que fez com que a espada japonesa virasse peça de museu) e com o sentimento de derrota causado pela segunda guerra mundial. Tudo que mantinha os japoneses unidos durante milênios parecia não servir mais.

E foi nesse momento que vários homens trabalharam duro para preservar a cultura japonesa e ao mesmo tempo adaptá-la, fazendo do Japão o país extraordinário que é hoje.

E um desses homens foi Morihei Ueshiba.

Ele viu que no mundo moderno a força não estava mais em subjugar seus inimigos pela força. No séc. XX, mesmo que você ganhe uma luta travada contra alguém no meio da rua, isso irá te trazer problemas maiores do que aquele que você evitou (como por exemplo um processo judicial).  Fora a questão da vingança (ninguém tem peito de ferro nem olhos nas costas) e do fato que, se formos pensar bem, briga não é uma coisa nada construtiva.

E Morihei traduziu o espírito do bushido para o nosso tempo. Através de uma arte marcial bastante sutil (o aikido continua sendo um metodo eficientíssimo de quebrar a cara de alguém se necessário) ele criou um sistema de disciplina do corpo e da mente extraordinário. E isso foi só o começo.

No aikido não há luta. A pessoa que recebe o golpe se esforça para ser um oponente que ajude a pessoa que aplica o golpe a evoluir. Da mesma forma, quem recebe o golpe trabalha seus reflexos, flexibilidade… Todos ganham, diferentemente de uma luta na qual sempre há um perdedor e um vencedor.  O aikido é cooperativo no treinamento.

O resultado disso é muito interessante: Treino Aikido há anos e nunca me lesionei seriamente. Diferentemente do que acontecia com o Muay Thai, por exemplo. Eu vivia quebrado.

Fora que no boxe tailandês chega um momento no qual você não tem outra alternativa a não ser partir pras competições se quiser continuar evoluindo. E quem não gosta de competir fica perdido Já o Aikido respeita os limites e caminhos individuais do praticante. Todo mundo se encontra nele e evolui no seu próprio caminho.

Encarando a coisa dessa forma bastante estranha acabei evoluindo muito mais do que na base da porrada. E isso é uma coisa bacana: O aikido tem como princípio a harmonia. A adaptabilidade. A tolerância. E a mensagem final da coisa é: Não há inimigos. Há harmonia. Não há derrota nem vitória. Há a pessoa que melhor se adapta à situação.

Não é à toa que o Aikido é conhecido como o budo dos budos.

A profundidade do pensamento do Aikido pode ser traduzida numa conversa que tive com Charles Sensei, meu professor e amigo. Comentei com ele que havia muito romantismo em cima dos samurais, e que os verdadeiros beneficiados do status quo do feudalismo japonês eram os daymios, que tinham exércitos mortais e leais como cães. Já a vida do samurai valia “menos do que a pena de uma ave”, conforme dizia o próprio bushido.

Foi aí que Charles sensei me disse o que Ueshiba Sensei disse sobre isso:

“Por isso O’ Sensei disse: A vassalagem não é mais de homem para homem. É do homem para com Deus.”

O’sensei, domo arigato gozaimashita!

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Caminhos – Parte 5 – Refúgio e redenção

Fernando levantou-se, e ao mesmo tempo em que se sentia leve, as pernas pesavam. Quase não acreditava no que Flávia havia lhe dito naquele momento. Quase não acreditava que ela se sentisse daquela forma que dissera quando do lado dele. Quase não acreditava naquela forma em que seus olhos se encontravam. Era tudo bom demais. Perfeito demais. Se maldizia dentro de si mesmo por se sentir acuado pelo fato de que aquela garota era tudo que ele sempre desejara.

Da primeira vez que viu Ana depois do encontro no show ele já sabia o que esperar. Seu coração bateu um pouco mais forte ao cumprimentá-la e abraçá-la. Conversaram como se conhecessem há muito tempo. Ela era inteligente, dona de si, feminina e audaz, ao mesmo tempo em que carregava uma espontaneidade quase infantil. Dizia o que sentia e o que queria sem medo nenhum que os outros a reprovassem ou a questionassem. Ela realmente sabia o que queria.

Tudo para Flávia era intenso. Se não fosse assim, não valia a pena. E ele admirava aquela forma de enxergar o mundo e aquela força. Ao mesmo tempo ela parecia conservar um coração de menina, uma ingenuidade consentida sobre o mundo, embora – ela contou – tivesse passado por tantos problemas. Ela não era fraca ou uma eterna adolescente. Ela era uma mulher forte e decidida, e isso o admirava.

Quando chegou em casa depois daquele que fora o café mais demorado da sua vida, Fernando teve a certeza de que estava apaixonado. E ele poderia ter vários defeitos. Podia ser obtuso, ter dificuldade pra enxergar as coisas de forma ampla, podia ter dificuldades para sair da introspecção que lhe era característica, e por vezes podia agir até de forma bastante egoísta. Mas uma coisa ele carregava dentro de si: Ímpeto. e, por mais que fosse assim, sabia o que queria, e sabia que para alcançar seus objetivos teria que se esforçar para enxergar as coisas como elas eram.

E decidiu pra si mesmo que não cometeria os erros de outrora. Não viveria aquele sentimento pela metade. Não molharia somente os pés na água da praia. Durante muito tempo vivera assim, não se entregando plenamente ao que sentia, e a desculpa era sempre o seu jeito analítico de ver o mundo. Desejava compreender tudo, enxergar as razões maiores por trás de tudo. saber não só os fatos, mas também os porquês. E, pra ele, isso era profundidade.

Mas, apesar de tão analítico, uma verdade ele negou durante muito tempo para si mesmo: A de que não era esse o motivo pelo qual ele nunca havia se entregado totalmente. O maior motivo era o medo. Medo de se comprometer, ou de não ser bom o suficiente, de machucar, ou de se machucar. Era isso que, às duras penas, admitira pra si mesmo.

Só que ele tinha uma vantagem, e sabia disso. A vantagem que possuem todas as pessoas analíticas. Apesar da dificuldade em sintetizar, depois que o faziam compreendiam o todo como poucos. E Fernando havia compreendido. Sabia exatamente o que lhe afligia. Sabia exatamente o que devia fazer para mudar.

E, como todas as pessoas analíticas, ele sabia tomar decisões sem hesitar. Depois de ver aquela garota tão poucas vezes, ele rira da piada do destino, e rira da sua própria certeza. Justamente no momento em que menos desejava, em que menos esperava e que menos achava estar pronto, Ana Flávia havia aparecido. E ele sabia que ela era mais importante para ele do que seus medos, e por isso os deixou de lado. Decidiu que sua mudança seria com ela. Decidiu que daria a ela aquilo que ele havia guardado por tanto tempo e nunca soubera dar a ninguém.

Ele era meticuloso. Planejou os próximos encontros. Planejou como agir. Sem ir com sede demais ao pote, sem fazer cobranças, sem fazer o papel de homem inseguro que acabara de encontrar a mulher perfeita. Deixasse ela dar o tom da dança enquanto ele sutilmente escolhia a música certa para dançar o ritmo certo na hora em que fosse conveniente para os seus planos. Ele sabia fazer aquilo. Sabia seduzir. Saberia fazer com que ela se aproximasse.

Só que quando passou a botar seu plano a cabo Fernando foi surpreendido. Era como se, depois de tanto refletir sobre o que devia fazer para arrumar sua casa, se levantasse de manhã disposto a fazer a faxina e já encontrasse tudo limpo: Tudo aquilo que ele havia planejado e que outrora gastava tanta energia para que acontecesse simplesmente fluía entre os dois naturalmente.

Ele não precisava se esforçar para que as coisas caminhassem num rumo. Ele não precisava se preocupar ou se monitorar. Do lado daquela garota ele se sentia à vontade para ser quem ele era, e ela não fazia cerimônia nenhuma em mostrar a ele que gostava do que via. Ele não precisava se esforçar para convencê-la de que um café com ele seria agradável, nem precisava planejar meticulosamente o lugar onde iriam com o receio de que ela não gostasse. Simplesmente porque ela não parecia se importar com nada mais, desde que estivesse ao lado dele. Todo o esforço que ele julgava ser necessário para fazer outrem feliz era desnecessário. Para ela, bastava simplesmente ele.

E era assim que ele se sentia do lado dela. Não precisava apressar as coisas. Elas aconteceriam naturalmente. E permitia simplesmente desfrutar de sua companhia, de suas conversas, de um café ao lado dela. De uma forma inexplicável ele sentia doçura em sua boca quando ela sorria, lembrava sutilmente de aroma de flores quando tocava suas mãos. E a intensidade daquilo tudo o atordoava.

E a primeira vez em que sugeriu suas intenções foi assim. Nada planejada. Depois de horas dentro do carro, na frente da casa dela, quando ela se despedia, o carro resolveu não ligar. E em meio segundo dentro de sua mente ele amaldiçoou até a sétima geração do destino, pensou todos os impropérios possíveis e teve a certeza de que se tivesse um desejo naquele momento, ele seria uma gilete para cortar os pulsos. Suas mãos suavam enquanto ele tentava ligar o carro. Tentava de todas as formas parecer tranquilo, mas era inútil. Ela percebera. Talvez porque o suor escorrendo de suas têmporas não combinasse muito com sua face aparentemente calma.

Fernando era assim. Quando as coisas saíam do controle ele praticamente surtava. Mas, para sua sorte, ele era bom em retomar as rédeas das situações. Depois de alguns minutos o carro pegou, e ele finalmente soltou a respiração e começou a rir. Ele não teve certeza do que Flávia achara daquilo tudo e da sua reação, pois tinha certeza que ela notara seu nervosismo. Pelo não ou pelo sim, resolveu rir da situação e relaxar. Ela disse que iria entrar, pois estava com sono, e se aproximou para se despedir.

E foi rindo que eles se abraçaram. Talvez por isso Fernando dessa vez tenha sentido aquele abraço mais aconchegante. Talvez por isso o aroma dos cabelos de Ana tenham se tornado mais intenso e sua pele tenha se tornado mais macia e aconchegante. A ponto de Fernando segurá-la mais demoradamente, sem mesmo perceber.

E ele reuniu coragem para fazer algo que há muito queria: Acariciou sua nuca levemente, com a ponta dos dedos; Sentiu o corpo dela estremecer, mas não houve tempo para enxergar muito, pois ela retribuiu o carinho, o que fez com que ele próprio sentisse um calor amolecer seu corpo. Instintivamente ele percorreu a face dela com suas bochechas, aproximando perigosamente seus lábios dos dela.

Foi então que ela o empurrou subitamente, abriu a porta do carro e correu pra dentro de casa. Não demorou mais do que um segundo para isso, mas para Fernando aquele tempo pareceu uma eternidade. Enquanto a via se afastando se sentiu como se tivesse sido nocauteado por um soco nas têmporas. Havia posto tudo a perder com seu ímpeto. Se aproximara cedo demais. Ele sabia que ela estava resistente. Sabia que levaria tempo. E mesmo assim se precipitara. Com certeza ela estava furiosa, ou amedrontada, ou tudo isso ao mesmo tempo. E, naquelas conjunturas, um afastamento daqueles poria tudo a perder. Era isso. Aquele sonho bom acabara ali.

Só que algo fez com que o mundo de Fernando parasse de desmoronar aos seus pés: Antes de entrar em casa ela parou, e se virou. Olhou de dentro de casa diretamente nos olhos de Fernando, e ele vira nos olhos dela uma expressão que até então ela não tinha mostrado. Uma languidez diferente com um toque de remorso. E acenou enquanto sorria timidamente.

Ele acenou de volta e ligou o carro (que dessa vez, graças aos céus, pegou). Percorreu alguns metros e, inexplicavelmente, começou a rir. Rir de si mesmo, daquela situação inusitada, e da sua reação diante dela. E lembrou o quanto era bom isso. Era mesmo hilário como conseguia sentir o prenúncio do apocalipse sobre seus ombros diante de qualquer situação inesperada, para depois concluir que, no final das contas, estava tudo bem. Ela olhara pra trás. Se quisesse realmente se afastar, não olharia.

E ela ligara. Pedira desculpas, e dentro de si Fernando até concordara que a reação dela tinha sido bastante estranha… Mas não conseguia sentir raiva ou qualquer coisa do tipo. Aquilo havia sido tão natural, tão espontâneo, que era simplesmente… lindo. E, se pudesse, ele a agradeceria, pois havia sido aquela reação que tinha feito com que Fernando entendesse a única coisa que faltava.

Ele que era tão meticuloso, planejador e monitor das próprias atitudes, naquela noite, diante daquela situação tão inusitada, compreendeu o que devia fazer: Soltou os remos do barco e fechou os olhos. Permitiu-se fazer algo que jamais pensou ser possível: navegar naquilo que sentia. E descobriu que, há muito tempo, mesmo sem saber, era isso que desejava. Aquele aperto no coração era somente a saudade daquilo que ainda não vivera.

Foi então ele teve a certeza de que aquela garota o fazia se sentir de uma maneira que jamais tinha se sentido. A certeza de que do lado dela as coisas caminhavam exatamente como ele sempre sonhara que caminhassem, com a diferença de que dessa vez ele não precisava mais remar contra o rio. O rio o levava onde ele queria chegar.

Naquela tarde, com o sorriso habitual que exibia quando do lado dele, ela, direta e transparente como sempre, perguntou o motivo pelo qual ele se aproximava. Normalmente Fernando diria mil coisas tentando racionalizar aquilo que seu coração sentia. Mas dessa vez foi diferente. Ele simples e naturalmente disse a verdade numa só palavra:

O motivo era ela.

Era ela que fazia com que ele se sentisse o melhor homem do mundo simplesmente por fazê-la tão feliz e à vontade do seu lado. Era ela que fazia com que ele olhasse pra dentro dele mesmo e visse o valor das qualidades que tinha, e a pequeneza dos defeitos. Era ela que fazia com que seu coração batesse mais forte, e que ele quisesse admitir isso sem medos. Sem receios de entregar seu coração a alguém. Sem medo de achar que não era bom o suficiente. Sem necessidade nenhuma de guardar suas costas de algum ataque inesperado do destino.

E a resposta dela apenas era mais uma prova daquilo tudo.

O fluxo de pensamentos na mente de Fernando se interrompeu quando ela, sem avisar,se aproximou dele sutilmente e se aninhou em seu ombro, dizendo sem nenhuma palavra que o lado dele era exatamente onde ela queria estar, e que era decisão dela estar ali, e que o único motivo era ele.

Foram juntos até o mirante da cidade e sentaram na grama. Ela não se importou em sujar a calça na relva molhada, nem com o vento frio que subia do vale, nem mesmo com as formigas que insistiam em quer um pedaço dela. Simplesmente ria de tudo, como se a simples presença dele ali fizesse tudo ter cores belas e vivas.

E fechou os olhos docemente quando ele começou a cantar e a tocar. Quando acabou, ela bateu palmas. Ele, que já havia tocado para tantas pessoas em tantos shows, pela primeira vez realmente desejava aquele aplauso e o valorizava. A sua voz, um pouco maltratada pelo cigarro, estava um pouco rouca, e ele esquecera parte da letra. Mas ela não se importava. “só canta pra mim… quero ouvir…” ela dizia. E ele tocava, na certeza de que ninguém no mundo aos ouvidos dela possuía uma voz mais bela.

Tudo nela dizia sem nenhum pudor quem ela desejava ao seu lado. E isso não tinha nada a ver com suas qualidades e defeitos, mas sim com aquilo que ele era. O homem Fernando. O homem que ela escolhera.

Ela disse que estava com frio, e ele estendeu aquilo que de mais sincero possuía: Seus braços. E ela sem nenhum receio se aninhou neles.

Ele correu a mão em sua face, e ela o puxou pra mais perto. Fechou novamente os olhos e puxou suas mãos, fazendo com que ele a aninhasse ainda mais em seu peito. Ele, por sua vez, fitou cada centímetro de seus traços belos, do tom da sua pele, da cor de seus cabelos, da beleza de suas curvas… Cada detalhe, cada movimento, cada fio de cabelo, cada pulsar daquela mulher o fascinava. E ele permitiu se maravilhar e se inundar por ela. Deixou que seus olhos fitassem algo mais importante do que ele mesmo, seus medos e suas inseguranças. Deixou que seus braços envolvessem sua cintura. Braços que ansiavam por protegê-la e aninhá-la, sem a menor dúvida de serem capazes.

Não sentiu pressão em se aproximar. Pelo contrário. Prolongou o quanto pôde aquele momento. Acariciou seus cabelos e cheirou o aroma doce de seu pescoço. Observou a forma como seu peito arqueava a cada toque, como ela em resposta inclinava a cabeça, para que ele pudesse percorrer melhor a pele de seu pescoço. como seus olhos se cerravam tranquilamente por baixo das pálpebras. Sentiu o calor do seu corpo envolvê-lo e derreter o muro gelado que cercava seu coração. Beijou sua testa e percorreu com seus lábios a sua fronte e o seu delicado nariz. Aproximou-os das suas bochechas e as tocou levemente, sentindo a maciez de sua pele. Fechou os olhos e ouviu sua respiração lenta e compassada. Beijou suas orelhas como se fosse a forma de dizer a ela tudo o que queria.

Estar do lado dela era um bálsamo. Era como se o mundo parasse. As cores ficavam mais suaves. Os sons se abaixavam. O tempo corria mais devagar. Os pensamentos se calavam. Fernando podia sentir o sangue correndo dentro das próprias veias. Podia sentir sua pele vibrando, sua respiração queimando as narinas. Aquela torrente de sensações o atordoava. Era como se estivesse embriagado, mas a sensação era muito mais doce. Seu coração queimava, mas batia devagar, compassado. Não havia mais nada a roubar sua percepção. Tudo nele queria se apaixonar por ela.

Finalmente seus lábios se tocaram. Primeiro levemente, depois num beijo suave, demorado e apaixonado. Neste momento Fernando não mais raciocinava. Não mais analisava. Todo o seu corpo se entregou à tarefa única de sentir e destilar tudo o que havia naquela mulher, de derramar nos seus lábios o seu coração. Fez isso de bom grado, sem desejar mais nada além dela. Como se saltasse de um precipício na inabalável fé de que com certeza ganharia asas.

E foi assim que, pela primeira vez em sua vida, Fernando conheceu a divina sensação de se sentir totalmente em paz ao lado de alguém.

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Caminhos – Parte 4 – Encontro e espelho

– Então, você ouviu a música que eu te mandei?

– Ouvi sim. Pra falar a verdade, ando escutando ela todos os dias.

– Ela é linda, não é? Marcou bastante a minha vida…

– É esquisito.. Nem sei explicar o que eu sinto quando eu escuto ela. Dá um aperto no peito que é bom e ruim ao mesmo tempo… uma vontade de chorar…

– É o que eu chamo de desespero nível 3.

– Aquele mesmo que você sentiu quando saiu correndo de mim?

Flávia corou.

– Cheio de engraçadisses, né?

– Foi ou não foi?

– Não vou dizer.

– Já disse – sentenciou Fernando, triunfante.

– Você adora me deixar sem graça, né? – Por baixo da mesa Flávia crispava as mãos.

– Gosto sim. Não tenho porque mentir! – assentiu Fernando, enquanto pegava no prato um sushi de salmão. – Eu espero que você goste mesmo de sushi tanto quanto você diz que gosta.

– Pois eu adoro! Se eu pudesse comia peixe cru todos os dias! – respondeu Ana Flávia – Uma vez eu levei minha avó pra comer sushi comigo. Ela olhou pra comida e disse “mas tá cru, minha filha!” E eu “mas vó, é por isso que é delicioso!!!” as últimas palavras saíram misturadas a gargalhadas e gestos no ar.

Comer sushi sempre deixava Ana bastante feliz, mas ela sabia que não era somente o peixe cru o motivo de seus risos em demasia. O outro era aquele cara, que parecia se divertir horrores com seus devaneios, seus arroubos, com suas histórias esquisitas e sua falta de memória, que não podia sequer ser chamada de memória seletiva, pois era bastante democrática. Ela esquecia datas, nomes de pessoas, onde botava suas próprias coisas (o que a fez adquirir o hábito de colocar as coisas sempre no mesmo lugar), telefones, compromissos, idéias, coisas a fazer… Quem a conhecia um pouco melhor sabia que era melhor nunca esperar que ela se lembrasse de algo.

Só havia duas coisas que Ana Flávia sempre guardava na memória: Sensações e sentimentos.

Era uma tarde de sexta-feira quando Fernando a ligou pela primeira vez, depois de várias conversas por MSN e de uma ou duas saídas em comum com amigos. O convite foi simples. Nenhum programa homérico. Ele só dissera que estava pensando em tomar um café e perguntou se ela gostaria de ir junto. E ela, surpreendentemente, topou sem pensar muito.

O ambiente era bastante simples e aconchegante. Ele pedira um café forte com chantily, e ela, que não gostava de café, pediu um chocolate quente, fazendo graça do próprio paladar de criança. Ele respondera apenas que jamais censuraria alguém por gostar de chocolate. Fez uma ou outra sugestão sobre o cardápio e depois dissera que sempre costumava frequentar aquele lugar quando queria ler ou pensar na vida. A referência a leitura encaminhou o assunto para os livros, e os dois descobriram que tinham sim muitos livros preferidos em comum, apesar das discordâncias do primeiro encontro. Descobriram também que gostavam das mesmas músicas, e depois que pensavam a mesma coisa sobre vários outros assuntos. Gostavam de teatro, de poesia e de RPG, embora ela adorasse elfos e ele os achasse um pouco afeminados demais, o que rendeu várias discussões acaloradas posteriormente.

A parte mais demorada do encontro foi dentro do carro, numa praça, onde pararam para comer alguma coisa. Conversaram sobre os mais diversos assuntos, embora o assunto preferido dele fosse ela. Os seus gostos, seus pensamentos, suas idéias. Ela se pegava respondendo sem nenhuma vergonha, e ele continuava ali, contemplativo, por vezes quase melancólico. E era dessa mesma forma que falava sobre si mesmo. Depois de mais de duas horas de conversa, se despediram com um abraço e um beijo. E Ana entrou em casa feliz. Muito feliz.

E no outro dia se falaram de novo por MSN, quase uma tarde toda. Ela ria em frente ao computador como se fosse uma criança. Ele disse que gostava de artes marciais japonesas, e ela respondeu que dos japoneses o que mais gostava era o sushi. Ele se animou e disse que conhecia um lugar ótimo, e perguntou se ela não queria ir junto com ele. E mais uma vez, antes que pudesse pensar, Ana aceitou.

Foram várias vezes juntos comer comida japonesa, e como antes sempre passavam horas conversando dentro do carro. Flávia percebeu que adorava estar com ele. Fernando era inteligente, culto e divertido. Demonstrava uma imensa segurança de si mesmo e uma tranquilidade que parecia encher o ar. Mesmo quando ela, aos próprios olhos, parecia  infantil, ou quando fazia algo que, aos seus olhos, irritaria qualquer homem, ele apenas mostrava um sorriso largo e brincava com a situação, e então ela se sentia estranhamente muito mais menina e, ao mesmo tempo, muito mais a vontade consigo mesma e com ele.

A coisa começou a preocupar Flávia quando ela percebeu que ele a lia demais. Mesmo ela sendo tão transparente como só uma ariana podia ser, mesmo ela, suspresa consigo mesma, não fazendo questão de esconder muitas coisas, aquilo era demais. Ele parecia compreendê-la como se pudesse ouvir seus pensamentos. E o pior: Por mais que, por medo ou por vergonha, a assustasse se sentir às vezes um livro aberto, gostava disso. E tinha medo de gostar demais. Não queria se envolver. Não naquele momento. Não era a hora. Ainda restavam muitas feridas. Entretanto, a vontade sempre falava mais forte e ela sempre aceitava um novo convite da parte dele.

Ele não caía aos seus pés, não a abordava, nem elogiava em demasia (quando o fazia sempre arrancava sorrisos que Ana tinha pavor que ele percebesse que eram de vergonha). Às vezes ela chegava a duvidar quais seriam as reais intenções de Fernando. Quando ela esperava que ele fosse encaminhar as coisas para um flerte, ele a surpreendia. E ela não sabia se ficava aliviada ou desapontada. Quando ela tinha alguma atitude que demonstrasse desinteresse, e esperava que ele transparecesse desapontamento ou algo do tipo, ele simplesmente sorria. Só continuava ali. Conversando, rindo, tendo idéias sempre interessantes e a convidando de novo para um café ou um sushi. E o conflito dentro de Ana crescia cada vez mais. Desejava tê-lo por perto, embora tivesse medo de se apaixonar. Ansiava por um gesto que transparecesse interesse em algo mais, embora tivesse medo de sua própria reação se isso acontecesse.

Até que um dia, no momento de se despedir, o abraço demorou um pouco mais do que o habitual, e ela sentiu um leve carinho em seus cabelos. Dentro do seu peito algo pareceu queimar, e aquele calor, junto da sensação de segurança e aconchego que aquele homem transmitia, inundou sua alma, e a fez querer ficar. Subitamente ela o afastou, quase grosseiramente, se despediu e saiu do carro, para logo depois se sentir culpada, e ter medo que ele se afastasse. E quando pediu desculpas, ele apenas sorriu e disse que não sabia do que devia desculpá-la.

Nesse momento ela soube: Estava apaixonada. Como iria lidar com isso, o que iria fazer, tudo isso era detalhe. Mas era bobagem ignorar o óbvio ululante de que desejava intensamente a sua companhia, o seu sorriso, os seus braços e a sua voz.

E como não era de negar para si mesma seus próprios sentimentos e vontades, estava ali. Mais uma vez com ele. Sem pensar muito. Sem questionar. Apenas sentindo a paz e a calma que a presença dele trazia ao seu coração.

– Você trouxe o violão?

– Sim. Tá lá no carro.

– Acho que você não deve gostar muito do fato de tirar o carro da garagem quando saímos.

Fernando transpareceu um falso ar de resignação.

– Bom, o que posso fazer? Não cabem dois mais um violão numa moto! Como eu iria cantar a sua música preferida? Promessa é dívida!

Ana Flávia riu. Há alguns dias ele havia gravado um trecho da música preferida dela no violão e enviado pelo MSN. Ela se derreteu. A voz dele era linda. Quase o xingou pela baixeza do golpe, mas pediu para que ele tocasse ao vivo.

– Eu gostei da gravação que você fez.

– Que bom que você gostou. Adoraria ver sua cara de envergonhada e o seu sorriso na hora que ouviu.

– E como você tem tanta certeza assim que eu sorri? – ela perguntou, semicerrando os olhos. Fernando demorou um pouco pra responder, para dizer então, num tom de voz baixo.

– Não tenho não. Mas gosto de imaginar que do outro lado do computador você estava sorrindo.

Flávia corou, constrangida. sentiu de novo o coração queimar dentro do peito. Não sabia o que dizer.

– Às vezes eu acho que você não tem juízo algum, sabia?

– Você ainda tem alguma dúvida? Eu sou advogado, ando de moto, leio gibi, sou nerd, faço tudo que é errado nessa vida… Acho que isso já tava meio óbvio – disse Fernando, entre um sorriso tranquilo. Flávia sorriu de volta. Adorava aquele senso de humor sarcástico.

– Não é isso.

– Então o que é?

Dessa vez foi a vez de Ana demorar alguns instantes para responder.

– Porque você está botando seus dedos no fogo.

Fernando se inclinou na mesa e disse em tom de confissão.

– E você acha que você está de frente pro que? Pra uma estrada de ladrilhos bonitinhos?

Flávia balançou a cabeça.

– Eu não penso isso, querido. Eu simplesmente vou – disse ela, mais para si mesma.

– Justamente. E esse é um dos motivos pelos quais estou aqui.

A afirmação atiçou a curiosidade de Ana Flávia. Ela não podia mais conter as palavras.

– Um dos?

– Quer saber os outros?

Ela olhou firme em seus olhos.

– Quero.

– Você me diz os seus depois?

– Isso é uma barganha, doutor? – Flávia respondeu, em tom de desaprovação. Fernando devolveu com uma expressão e tons sinceros, disfarçados pelo humor.

– Não, minha princesa élfica. Isso é uma troca.

Ana Flávia mais uma vez não teve como discordar.

– Advogados. Cortem-lhe as cabeças. Você diz primeiro.

Ele respondeu, enquanto a olhava de uma forma diferente. Mais decidida. Mais forte. Mais profunda

– Só há um motivo pelo qual estou aqui agora: Você.

Flávia queria mais. Queria saber mais. Queria ouvir tudo que ele tinha a dizer. Tudo ao mesmo tempo.

– Você está sendo invasivo.

– Não estou não. É só você ouvir da maneira certa – Fernando disse em tom de voz baixo.

Flávia entendeu a profundidade daquelas palavras. E, naquele instante, algo dentro dela se despedaçou, como uma vidraça atingida por uma pedra pesada. O brilho em seus olhos se intensificou.

– Minha vez?

– Claro.

As palavras saíram da boca de Flávia sem que ela quase pudesse sentir que as pronunciava.

– Eu estou aqui porque sou muito melhor quando você está perto.

Fernando fez ar de surpresa.

– Sério?

– Sim. Todas as vezes. – Flávia abaixou os olhos, como que dizendo pra si mesma – Fico espantada que meus defeitos não te incomodem, que te façam rir, que você não se importe com minha falta de memória, e com minha arrogância eventual.

– Quer saber minha opinião?

– É claro.

Fernando assumiu novamente um olhar contemplativo.

– Você não é arrogante. Aliás, deve odiar arrogância. Na verdade, eu demorei um pouquinho pra descobrir uma coisa que você já sabe: Que o que muita gente chama de humildade é auto sabotação. Humildade é outra coisa. A gente tem mesmo que se ver sempre como o melhor que podemos ser, e buscar isso. Isso não é arrogância. E além do mais…

Flávia apenas levantou a sobrancelha, ansiando pelo resto da frase. Fernando abaixou o tom de voz e olhou fundo nos olhos dela, com doçura e sinceridade:

– Eu sei que por detrás dessa força toda há uma menina frágil.

Flávia sentiu um aperto no estômago.

– E eu gosto muito dela.

Os dois ficaram parados, um olhando nos olhos do outro. Ana se sentia como uma criança. Era como se ela fosse incapaz de machucar aquele homem. Ele era forte, era seguro. Era sim tudo isso. Mas havia algo mais.

Ela tinha medo. Medo que as palavras ditas ou que suas atitudes se tornassem navalhas. Não queria mais machucar alguém querido. Não queria mais agir infantilmente. E não queria mais ser abandonada, fosse por seu ímpeto pela vida não ser acompanhado, ou – pior – por machucar alguém enquanto andasse do lado dessa pessoa.

Mas aquele homem… Ele fazia com que ela se sentisse muito mais bonita. Muito mais forte. Muito mais segura. Bastava uma palavra, um olhar, ou às vezes apenas que ela pensasse nele, para que ela visse a mulher que ele enxergava. Uma mulher forte, decidida, e ao mesmo tempo uma menina frágil que – sabia ela – sempre teria o ombro dele para se apoiar. E ele era forte. Ele aguentaria. O mundo poderia se dobrar, mas ele não. E ao lado dela – ela também sabia – teria as forças para não se dobrar também. Teria forças para conquistar o mundo.

Quando seus próprios véus se rasgavam, Ana Flávia tinha medo que por detrás deles encontrasse uma garota imatura, pedante, infantil e fraca. Mas aquele homem havia chegado, e, antes que ela pudesse dizer não, tinha rasgado aqueles véus, e feito com que ela visse por detrás deles algo surpreendente: A mulher que ela sempre quis ser, e que agora sabia que era.

Ele tocava em suas mãos, e mostrava delicadeza onde ela via rudeza. Mostrava firmeza de caráter onde ela tantas vezes enxergava obtusidade. Mostrava espírito forte onde ela tantas vezes vira ingenuidade. Mostrava feminilidade onde ela às vezes vira fraqueza. Mostrava uma felicidade e uma alegria que havia ouvido tantas vezes – e acreditado – que ela jamais alcançaria.

Era como se mesmo o ar que havia entre eles tivesse desaparecido. O silêncio e eles dois pareciam as únicas coisas existentes. ele a fitava como se nada no mundo fosse mais importante do que ela, e ela sabia disso. E sorriu demonstrando a satisfação de ter aquela certeza. Sorriu sem véus, sem fingimentos e sem medos. Como há muito não sorria.

Sem dizer nada eles se levantaram para pagar a conta. Ele foi na frente, chamando o garçom. No meio do caminho um impulso tomou o coração de Ana. Um impulso que ela não podia resistir, nem mais queria. Se aproximou dele por trás sem que ele visse, segurou delicadamente seus braços e pousou o queixo suavemente em seus ombros. Queria se aninhar neles. Queria que ele soubesse disso. Queria que ele a tomasse pelas mãos e a guiasse, que mostrasse a ela as suas verdades. Queria ver nos olhos dele a mulher que agora ela tinha a certeza que era.

Queria tudo isso, e muito mais. Agora, e ao mesmo tempo.

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Caminhos – parte 3 – A encruzilhada

O show foi tudo que se espera de um mega show de uma banda internacional. A música tocava alto e as pessoas gritavam enlouquecidas enquanto a vocalista, uma loira de pernas longas, corria pelo palco enquanto cantava. O som metálico da guitarra provocava arrepios e a bateria parecia contrapor as batidas dos corações dos expectadores.

Depois do show todos decidiram comer alguma coisa. O lugar escolhido foi uma pizzaria. Mesa grande, pessoas conversando e muitas risadas. E muito embora as guitarras já estivessem só na lembrança de um show perfeito, Ana Flávia ainda sentia o choque na sua alma.

Quando os olhos se encontraram com o daquele cara estranho, vestido de couro e de cabelos longos, ela não sabia o que pensar. Ele a fitou de cima a baixo, numa ousadia tremenda, como se não se importasse que ela visse que estava sendo comida com os olhos. Depois pareceu deixá-la totalmente de lado. E ela se irritou. “quem ele é? Ou melhor, QUEM ELE PENSA QUE É?”, refletiu consigo mesma. Mas depois de algumas palavras algo nele a atraiu. Ele era inteligente, seguro de si, tinha idéias interessantes, e sem dúvida era bonito, apesar de estar precisando de roupas mais claras e de um sapato novo.

Depois ele ficou lá, assistindo o show, com cara de quem estava adorando. E agora estava sentado ao lado dela, sendo simpático, sorridente e alegre, mas não parecia derretido por ela. Na verdade, ela nem sabia se ele estava dando muita importância para a presença dela ali do lado, ou mesmo se a tinha achado uma patricinha boba. E, por algum motivo que ela não sabia dizer,  estava atraída por ele, apesar de tentar negar o fato. Ansiava por um olhar dele, por um elogio, algum sinal de flerte.

Isso era algo que realmente a irritava: Não saber o que fazer numa situação. Levantou-se, catou uma amiga pelo braço e foi ao banheiro. Precisava respirar.

E quando chegou em casa pensou mais do que gostaria nele.  Deitou para dormir e seu sono que geralmente vinha tão rápido demorou a aparecer. Foi quando o mundo começou a sumir debaixo de seus pés. Não queria sentir aquilo agora. Não era a hora.

Soltou um palavrão e se levantou. A vontade foi mais forte. Pegou seu netbook e procurou entre os contatos do orkut de seus amigos o perfil dele. Queria saber mais sobre aquele garoto estranho, ousado, motoqueiro, advogado e que se vestia todo de preto. Tudo que, numa situação normal, ela não gostava numa pessoa.

——————————-

A situação não era complicada, mas Fernando não sabia o que pensar dela. Aquela garota era inteligente, tinha um sorriso lindo, um jeito de quem quer tudo ao mesmo tempo… era fascinante. Não se precisava mais do que cinco minutos do lado dela para saber que era apaixonada pela vida e transmitia isso a tudo que tocava. No primeiro contato conversaram sobre música e literatura. E não concordaram em absolutamente nada. Mas o que deveria gerar antipatia atiçou a curiosidade de Fernando. Uma coisa era certa: Ela sabia o que queria e defendia seu ponto de vista. Ele admirava isso numa pessoa.

Depois parou para fitá-la à distância, e gostou do que viu. Não tinha paciência para garotas que andavam como se tivessem algodão nos pés. Ela não era assim. Era altiva, dona do mundo, confiante. E convenhamos: Era também linda, de parar o trânsito, como comentou sutilmente com seu amigo que a tinha apresentado, com uma atenção especial àquele belo par de pernas. E Fernando teve a nítida sensação que ela sabia disso.

Como não queria ser mais um a confirmar o óbvio, não deu muita bola nem bandeira.  Se sentou do lado dela e puxou papo. Ela era uma garota agradável, e ele desfrutou da companhia dela como estranhamente há muito tempo não desfrutava da companhia de alguém. Fez isso com muito cuidado, sem transparecer muito interesse, nem muita distância, apesar de por dentro seu ímpeto ser o de sacar a cantada mais descarada do mundo, só pelo prazer de fazê-la corar.

Ao chegar em casa, tudo se confirmou. Fernando raramente falhava nas suas previsões. E como já imaginava que aconteceria, a garota não saía de sua cabeça. Como pensou, a situação não era mesmo complicada. Estava fascinado. Ponto final. E sabia que se ela fosse mesmo daquele jeito, então ele estava a um passo de se apaixonar. Ele não planejava isso, e de certa forma ficava assustado. Não sabia se estava preparado, mas sabia que era bobagem fugir. Por isso já imaginava qual seria o próximo passo e como se aproximaria dela. Respirou fundo e procurou o MSN dela na internet.

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Caminhos – Parte 2 – A road made of dreams

O chão corria debaixo dos pés de Fernando. O olhar fixo à frente calculava cada espaço, previa cada movimento e identificava cada situação perigosa. O fluxo de informações em sua mente se traduziam em respostas rápidas no guidom, no acelerador e nos freios. O vento frio parecia cortar a pele, o que, estranhamente, o fazia se sentir um pouco mais vivo.

Se olhou no retrovisor da moto. Pele morena, bem diferente das carinhas de menino chorão dos playboyzinhos da faculdade, sobrancelhas grossas, nariz aquilino, olhar firme e altivo, um pouco agressivo, cara “de vilão de filme mexicano”, como diziam alguns amigos. Cabelo preto penteado pra trás, amarrado num rabo de cavalo. Jaqueta de couro preta reluzente. Adorava esse visual. Era assim que um homem devia transparecer. Forte e confiante.

Parou no lugar de sempre. A orla do lago da cidade, virada exatamente para a ponte. Fitou longamente as luzes dos carros passando rápido, contrastando coim o escuro da noite. Uma visão que sempre o agradava. Sentiu os músculos totalmente relaxados, a sensação do mundo passar mais devagar. O olhar perdido. Exatamente como se sentia depois de alguns minutos pilotando.

Era exatamente a contraditória sensação de tanta tranquilidade ao fazer algo tão perigoso que o agradava tanto. Não era a adrenalina de correr a trezentos quilômetros por hora desafiando o perigo como muitos “meninos”, nas palavras dele, faziam, mas sim a confiança de estar exposto ao perigo e sair dele ileso, usando somente de sua capacidade e de sua prudência. A cada fechada ou a cada situação de risco dizia pra si mesmo “calma.” “devagar.” “olhe pra frente.” “Há uma saída.”, e então passava pelo perigo sem sustos. Onde os outros caíam, ele se mantinha de pé. O mundo podia desmoronar, mas ele se mantinha tranquilo. Era por isso que gostava de pilotar, e queria continuar fazendo aquilo que gostava por muito tempo.

Acendeu um cigarro e tragou fundo, olhando compenetrado para a brasa. Aquele era um dos resquícios do velho homem, como ele costumava dizer. Já estava pensando em parar de fumar há algum tempo, e sabia que a hora estava chegando, como havia chegado – sabia ele – a hora de mudar várias coisas em sua vida.

Escorou-se em sua moto e ficou ali, fumando e conversando com a noite em silêncio. Já perdera as contas das vezes que fizera aquilo naquele mês, e estava se tornando cada vez mais frequente. Não tinha mais paciência pras saídas noturnas que sempre acabavam em noitadas de rock, gente bêbada e a volta sozinho pra casa. Não tinha mais o menor saco pros encontros do motoclube, farras nas quais sempre sobrava cerveja – algo que não combinava, na sua opinião, com sair de moto – e faltava conversas inteligentes. Estava cansado de cuidar de amigos bêbados enquanto ele sempre cuidava de si mesmo, segurava a própria onda e achava sozinho o caminho de casa sem incomodar ninguém – até porque sabia que não podia contar com ninguém além dele mesmo. Ele sabia bem que não era ali que iria achar o que procurava, mas só agora resolvera encarar isso de frente.

E por isso agora tinha se isolado para refletir sobre que rumos tomaria. Era gostoso curtir de novo a própria companhia depois de tanto tempo. Um prazer que há muito ele esquecera. Mas também era doloroso encarar como havia empurrado a vida com a barriga.

Já havia mudado bastante, era verdade. Sair do mundinho que criara dentro de sua cabeça era difícil, mas estava sendo gostoso. Tinha redescoberto o cara bonito, inteligente e bem sucedido que era. Tinha redescoberto o prazer de tocar seu violão, de pilotar sua motocicleta, se vestir bem, do contato com seus amigos, de agradar quem lhe era querido, de fazer seu trabalho com a competência que só ele sabia fazer. Estava resgatando aquilo que era mais importante pra ele.

Só que uma dor continuava ali. A dor de, por mais que soubesse que aquele relacionamento desde o início tinha sido um erro, viver do lado de uma pessoa e ser tão fechado a ponto de não permitir se mostrar e nem de vê-la como ela era de verdade, mesmo tendo estado naquela situação tanto tempo. A dor de ter que admitir pra si mesmo que, apesar de seu esforço em fazê-la feliz, tinha feito tudo errado. E agora ele entendia que, por mais que suas intenções fossem boas, o que contava era o que ele realmente fazia. E passar a vida reclamando da situação em que está, sem vivê-la de verdade, não o levaria onde ele queria chegar.

Não que lamentasse. Ele não queria mais. Havia acabado. Já havia há muito assumido sua vocação para anjo da guarda, mas não de de alguém que não queria ser ajudado. Só que mesmo assim ele questionava se havia realmente aprendido com os próprios erros. Se estava pronto para fazer alguém feliz, pois sabia que jamais se sentiria completo se não fosse assim. Questionava até mesmo se o relacionamento que sonhava pra si não era mais um fruto dos constantes devaneios de sua personalidade naturalmente introspectiva.

Talvez viver lado a lado fosse aquilo mesmo que estava acostumado a ver. Talvez a pouca idade o fizesse manter certas inocências e esperanças que com o tempo fossem embora. E era mesmo isso que estava acontecendo. Já não esperava mais se sentir tão completo ao lado de alguém como um dia esperou. Também não ia se jogar em qualquer relacionamento pelo medo de ficar sozinho. Não iria repetir os mesmos erros novamente, e se assegurava disso daquela forma: cortando na própria carne as gangrenas que ainda doíam. Se era essa a forma de continuar seguindo, então que fosse. Poruqe uma certeza tinha: Seria sim muito feliz. Talvez não daquela forma que sempre sonhara, mas seria.

Não esperava nada daquela noite. Iria deixar as coisas fluirem e, no final, iria voltar pra casa em sua moto, curtindo o vento frio e deitando em sua cama, apreciando a própria companhia, se assim fosse.

O show já iria começar e tinha marcado com alguns amigos. Subiu na sua moto, confiante na sua maneira de andar. Sem inseguranças a respeito de sua capacidade. Sem medo de errar, sem falta de confiança na sua própria análise. Aquilo tudo o tornara mais forte, E a cada curva, a cada situação de perigo, diria pra si mesmo novamente: “calma.” “devagar.” “olhe pra frente.” “há uma saída.”. E escaparia ileso. Os outros cairiam, e ele estaria ali para ajudar. Ele era forte. Continuaria sempre de pé.

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Caminhos – parte 1 – 100 escovadas antes de sair

– Às oito? Ok. Vamos juntos. Eu deixo o carro aí e a gente vai no seu. Tô meio sem saco pra dirigir. Eu deixei meu ingresso com você? Não? Merda… Tá bom. Vou procurar aqui. Deixa eu ir me arrumar senão chego atrasada. Até mais tarde.

Ana Flávia desligou o telefone. Procurou na bolsa o ingresso do show. Revirou carteiras e agendas até encontrá-lo, no meio de alguns papéis do trabalho. A roupa já estava separada. Uma saia curta, botas, uma blusa larga e uma jaqueta pra caso sentisse frio. Tudo combinando. Ela poderia perder tudo, mas a vaidade e o senso de cuidado consigo mesma jamais.

Ela era assim. Orgulhosa de si mesma, de seus valores e de seus caminhos. Se orgulhava ter vencido tantas adversidades na vida e de estar ali, seguindo e ficando sempre mais bonita, mais inteligente e mais rica. Nada era desculpa para não cuidar de si mesma, para se olhar no espelho e não gostar do que via, dentro e fora. E se tinha algo que havia lhe dado forças para passar por mais aquele inferno, era isso.

Tomou banho devagar, pensativa, fitando as gotas d’água descerem pelo azulejo da parede. Gostava da banda que iria tocar naquela noite, mas estranhamente não tinha o menor ânimo nem a menor paciência pra sair de casa. Virou-se na direção do box embaçado, como se esperasse ver sua imagem ali refletida.

A água quente era reconfortante, mas algo dentro dela não se aquietava. Já estava assim há meses. Como era uma pessoa orgulhosa das auto-análises sempre bem acertadas, sabia bem o que era. Não era isso que a incomodava, mas a total falta de perspectiva sobre o problema.

Já há alguns meses ela tinha terminado um relacionamento. Aliás, terminado não. Não era essa a palavra. O relacionamento tinha desmoronado, em meio a brigas, erros e feridas. Os dois simplesmente não se entendiam mais sobre a vida. Ela sempre ativa, correndo atrás de tudo ao mesmo tempo, e ele acomodado, apático.

Flávia não se enganava. Sabia há muito tempo que aquele namoro já tinha dado o que tinha que dar, e o tempo só contribuiu pra deixar isso mais óbvio. O que doía era que não precisava ser assim. As coisas não precisavam ter se alongado tanto, coisas não precisavam ter sido ditas ou feitas. E ela sabia e admitia que grande parte dessa culpa era dela. Se não tivesse sido às vezes tão cabeça dura talvez os dois tivessem saído menos machucados daquela história. Ela, que não gostava de machucar as pessoas, tinha machucado demais. Os seus defeitos se revelaram navalhas que podiam cortar muito mais fundo do que ela imaginava e gostaria. E agora usava grande parte do seu tempo digerindo aquela culpa e sobre que tipo de pessoa ela realmente era.

A outra parte do tempo pensava no futuro, e ele não era nada animador. Refletia sobre que tipo de relacionamento que queria pra si agora. Não era o joguinho bobo que via entre os casais por aí, ou a falta de cumplicidade que notava entre os casais que conhecia. Ela era melhor do que isso. E por isso sentia falta de um companheiro de verdade, alguém com quem realmente sentisse estar caminhando lado a lado, sem medo de ser abandonada no meo do caminho. Era algo que ela nunca havia vivido, nem conhecia alguém que tivesse. E de repente, por conta disso, chegara à conclusão que isso com certeza não existia, ou, se existia, não era pra ela.

Saiu do chuveiro e foi pro quarto. No computador tocava Chico Buarque e Oswaldo Montenegro. Boa música. Disso ela nunca abria mão. Boa música, boa comida, boa leitura e boa companhia. A vida era pra ser bem vivida. Se não fosse assim não valia a pena. Enquanto a música tocava ela vestiu-se lentamente e postou-se à frente do espelho, escovando seus longos cabelos loiros. Maquiou-se cuidadosamente. Sobrancelhas bem feitas ressaltando seus olhos castanhos, maquiagem clara e discreta para não apagar os traços harmônicos e perfeitos de seu rosto, um batom vermelho sutil e unhas cuidadosamente pintadas de creme cintilante. Passou a mão pelo seu corpo. Parou em sua cintura e a apertou levemente, marcando seu belo quadril. Estava linda, e era assim que se conhecia e que era: Bonita, feminina, sorridente e encantadora.

Estava satisfeita, mas ainda pensativa. Se aquilo com que sempre sonhou não existia, se era muito pedir alguém que amasse a vida com tanta intensidade quanto ela a ponto de querer vivê-la plenamente, então o que iria fazer? Não era da sua vocação ficar sozinha, e também não era do seu feitio abandonar seus valores, se submeter ao mundo ou ao status quo. Já tinha feito lá seus planos para sobreviver a um relacionamento meia-boca, mas nenhum deles era bom o suficiente. Nenhum a fazia suficientemente feliz. E se não a fazia feliz, não servia.

Mas resolveu deixar aqueles pensamentos de lado por hora. A lua brilhava bonita no céu, o que era sempre sinal de bons presságios. Além do mais, não havia nada que ela pudesse fazer naquele momento, pois havia prometido a si mesma passar um longo tempo sozinha, “cuidando do seu jardim”, como dizia uma música que ela gostava muito e estava ouvindo bastante. Se o mundo não fosse bom, ela ainda teria ela mesma do lado. Era a única certeza que podia ter.

Pegou a sua jaqueta, deu partida no carro e saiu.  Agarrou-se com força em sua solidão e resolveu que teria uma noite divertida e alegre ao lado de seus amigos, e não se importava que ela insistisse parecer cada vez mais escura e fria. De um jeito ou de outro a vida dela seria aquilo que ela sempre sonhou que fosse, feliz e bem vivida. E se não encontrasse um caminho pra isso, abriria um.

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De frente pro crime, A.K.A. circo de horrores

As pesquisas mais avançadas em neurociência revelaram que nosso cérebro não é um órgão no sentido puro da palavra, mas sim um emaranhado de órgãos, cada um deles com funções bastante específicas. E cada um desses órgãos se desenvolveu em momentos diferentes da evolução humana, nos quais as habilidades importantes para a sobrevivência eram diferentes.

Assim, possuímos campos cerebrais específicos e independentes. Uns são responsáveis pela fala, enquanto outros são responsáveis pelo pensamento abstrato, outros pela locomoção e equilíbrio, outros pelas emoções, outros pelo raciocínio lógico, etc.

Existe uma parte do cérebro chamada sistema límbico (considerada primitiva, pois teria se desenvolvido ainda no período paleolítico) que é responsável pela construção das emoções e pelos reflexos físicos do corpo a estímulos emocionais externos.  Partes do sistema límbico são responsáveis, dentre outras funções, pela construção de nossas respostas reativas e instintivas a perigos iminentes.

Áreas do sistema límbico como a amígdala e o hipocampo liberam no sangue, diante de uma situação de perigo ou de ameaça à integridade física, hormônios como a adrenalina e o cortisol  Esses hormônios aceleram os batimentos cardíacos, tensionam os músculos, aumentam a frequência respiratória e nos deixam em estado de alerta imediato, prontos para as duas reações mais básicas do ser humano diante do perigo: Fugir ou lutar.

Uma das funções do sistema límbico é a memória empírica emocional (MEE). Basicamente ela guarda no arquivo todas as experiências emocionais a estímulos externos, e os classifica como estímulos desejáveis ou evitáveis.

A MEE é um dos bancos de dados mais importantes do cérebro, e também para a nossa vida diária. Ela estimula as áreas progressistas de nosso cérebro, como o córtex pré-frontal, a raciocinar melhores maneiras de se alcançar objetivos ligados profundamente a emoções fortes.

Em outras palavras, das lembranças que estão lá depende a nossa capacidade de gerar motivação para correr atrás do que é importante pra nós. Quando ligamos através da MEE nossos objetivos a valores e conceitos emocionalmente importantes pra nós, nossas áreas progressistas do cérebro serão constantemente estimuladas a trabalhar na resolução de problemas e na criação de idéias que nos movem em direção a estes objetivos.

Mas a MEE também alimenta áreas hiper reativas como a amígdala cerebral, que está sempre procurando novas situações de perigo e maquinando o tempo inteiro todos os riscos e possibilidades mais prejudiciais diante de situações diversas.

A amígdala é a área do nosso cérebro ligada à proteção e prevenção. Nos faz considerar a pior possibilidade, o maior perigo, e nos dá motivo para ficar em casa ao invés de sair, de nos retrairmos ao invés de tentarmos algo diferente, a buscarmos estabilidade ao invés de mudança, a nos agarrarmos aos objetivos já conquistados ao invés de arriscar em novas aspirações.

E isso explica bem o porquê da nossa querida amígdala gostar tanto de televisão.

Se sintonizarmos o noticiário nesse exato momento, seremos bombardeados de todo tipo de desastre natural, violência gratuita, notícias escabrosas e coisas que deram errado mesmo em situações improváveis. E nosso cérebro faz um “log” de todas essas situações, enquanto as áreas reativas maquinam nossa virtual reação diante daquele estímulo.

Infelizmente para nós, como o sistema límbico é uma área primitiva do cérebro, treinada para nos ajudar em confrontos com animais selvagens e forças da natureza, ele não possui a prerrogativa de ser muito perspicaz. Basicamente, ele só possui aquelas duas respostas (fugir ou lutar) a todas as situações potencialmente ameaçadoras que consegue perceber, seja ela a repentina aparição de um jaguar por trás da ravina ou a iminência de subir num palco para iniciar um discurso.

Os estudos neurológicos mais recentes mostram que nosso mundo evoluiu mais rápido em complexidade e quantidade situações do que a capacidade de evolução de nossas áreas cerebrais mais primitivas. Elas não sabem diferenciar um elefante furioso vindo em nossa direção de uma garota linda nos dando mole ( garota esta que, obviamente, é demais pro nosso bico e é vista pela amígdala cerebral como uma linda probabilidade de receber um fora, coisa esta indesejável e evitável, como já lembrou previamente a MEE).

Quando essas áreas reativas estão super estimuladas entendem toda e qualquer situação como potencialmente danosa. E quando a situação não o é, a adrenalina e o cortisol se acumulam em nossa corrente sanguínea, criando um estado constante de tensão não liberada que massacra o corpo, bagunça o metabolismo (gerando um consequente ganho de peso) e cria uma série de radicais livres que no futuro serão a causa de aparecimento do câncer que você terá para chamar de seu.

O mundo moderno conhece esse estado como “stress”, uma das maiores causa de mortes prematuras e de doenças de que se tem notícia.

E não é só isso. Ao entrar em funcionamento, as áreas reativas do hipocampo suprimem e “desligam” funções mais sofisticadas oriundas do córtex cerebral, como a abstração e o raciocínio. É óbvio. Ninguém vai pensar em pintar um quadro ou ler um tratado de filosofia se o corpo está se preparando para correr como se um leão furioso viesse na direção dele.

E como as áreas do cérebro possuem a capacidade de se desenvolver com o uso e de atrofiar com o desuso (sim, igualzinho a um músculo), o estímulo exacerbado das áreas reativas faz com que a pessoa se torne cada vez menos imaginativa, criativa, impetuosa e cada vez mais conformada, medrosa e inerte.

É muito revoltante como a tragédia na escola de Realengo está tomando os noticiários já há quase uma semana. As pessoas simplesmente não cansam de falar disso. Primeiro trataram de dizer como foi o episódio passo a passo, do planejamento até a execução. Rolou até gráfico mostrando por qual escada o assassino subiu, com quem falou, em quem atirou primeiro, etc. Depois a imprensa traçou um perfil de todas as vítimas e familiares (inclusive filmando os velórios das crianças, com direito a desmaios dos pais. Um absurdo).

E aí vem a parte mais desoladora: Resolveram que era importante criar um perfil psicológico do assassino. E tome “especialista” na televisão falando com muita propriedade sobre coisas que não entende. Primeiro o rapaz era fruto do meio. Depois sofreu Bullying. Aí inventaram que ele era um fanático religioso. Especularam se ele teve treinamento militar ou não (como se atirar em crianças indefesas fosse algo muito difícil…).

Apesar de entender, pelos motivos que já citei, o porquê desse tipo de tragédia causar tanto prazer nas pessoas ao ser comentada (sim, prazer, e um prazer muito primal), não consigo me conformar com imprensa filmando velório de criança! Caralho, cadê o respeito à dor dos envolvidos?

Não aguento mais ouvir falar desse cara, por um motivo muito simples: Essas teorias malucas sobre ele são inúteis. Ele é só um suicida covarde. E como a televisão não noticia suicídios, o cara deu um jeito de aparecer. De chamar a atenção do mundo inteiro de uma vez.

É um covarde porque não conseguiu se matar sozinho. É um covarde porque matou um monte de crianças. É um covarde porque quando foi confrontado por um policial treinado fugiu do conflito cometendo o tão sonhado suicídio. É um covarde porque jogou em cima de outras pessoas toda a responsabilidade do que fez. É um covarde porque foi incapaz de enfrentar a vida como ela é e achou melhor viver dentro do próprio mundinho.

É só isso que ele é: Um covarde que procurou a saída mais fácil que existe. Não é um psicopata. Psicopatas não se matam. Psicopatas não chamam atenção para si. Pelamordedeus. Parem de ficar falando desse crápula, porque o que ele queria era exatamente isso: Atenção. Aparecer. Ser comentado.

E autoridades, pelo bem da democracia e da sua própria imagem, parem de querer se aproveitar politicamente dessa tragédia. Como se as famílias já não estivessem sofrendo o suficiente.

E pessoal, pelamordedeus, vamos assistir menos televisão. O medidor de stress agradece.

Pra refletir, segue a letra da música de João Bosco que dá nome a esse post. Descreve perfeitamente a reação popular ao episódio. Segue também o link no youtube pra quem quiser ouvir.

Abraços a todos, na esperança de um dia conseguirmos ser menos primitivos.

http://www.youtube.com/watch?v=2jRbt_x6Uj8

Tá lá o corpo
Estendido no chão
Em vez de rosto uma foto
De um gol
Em vez de reza
Uma praga de alguém
E um silêncio
Servindo de amém…

O bar mais perto
Depressa lotou
Malandro junto
Com trabalhador
Um homem subiu
Na mesa do bar
E fez discurso
Prá vereador…

Veio o camelô
Vender!
Anel, cordão
Perfume barato
Baiana
Prá fazer
Pastel
E um bom churrasco
De gato
Quatro horas da manhã
Baixou o santo
Na porta bandeira
E a moçada resolveu
Parar, e então…

Tá lá o corpo
Estendido no chão
Em vez de rosto uma foto
De um gol
Em vez de reza
Uma praga de alguém
E um silêncio
Servindo de amém…

Sem pressa foi cada um
Pro seu lado
Pensando numa mulher
Ou no time
Olhei o corpo no chão
E fechei
Minha janela
De frente pro crime…

Veio o camelô
Vender!
Anel, cordão
Perfume barato
Baiana
Prá fazer
Pastel
E um bom churrasco
De gato
Quatro horas da manhã
Baixou o santo
Na porta bandeira
E a moçada resolveu
Parar, e então…

Tá lá o corpo
Estendido no chão…

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Música – Chico Buarque, A.K.A. “mirem-se nas mulheres”

Há uns posts atrás escrevi sobre os virginianos. Foi um post simples, com uma imagem e uma pequena frase que define muito bem a natureza terrena deste signo: “eu sento e observo”.

No último post sobre cartola falei sobre o mestre cafajeste-mor Chico Buarque, um dos meus compositores favoritos com no mínimo umas 2 voltas à frente de muitos outros.

E o que me faz gostar tanto de Chico Buarque é que ele não é um gênio no sentido de ter feito algo novo, nem é um desses “gênios mudernos” que fazem qualquer merda e dizem que é música. A imensa maioria das canções dele não se sustentam em um monte de metáforas ininteligíveis ou frases que parecem não ter destinatário. A obra do Sr. Francisco Buarque de Holanda é baseada unicamente na observação de coisas simples do cotidiano. As exceções a essa regra são algumas compostas na época do regime militar, quando o uso de metáforas era algo necessário para que a música não fosse censurada. Um exemplo é “cálice”, em parceria com Gilberto Gil, o que não me surpreende… já li uma entrevista do Chico em que ele diz que nem ele mesmo sabe o que quis dizer em algumas partes dessa música…

Como já disse Raul Seixas, arte é contar de forma diferente o que todo mundo sente. E nisso, que me perdoem os outros, Chico Buarque até agora não foi superado na música brasileira. O cara pega a rotina seca do peão de obra e escreve “construção”, uma música de dar nó na garganta até de Seu Lunga. Pega a rotina de todo dia de um casal e escreve “cotidiano”, uma letra que faz qualquer um querer ter uma casinha com uma mulher linda pra voltar todo dia.

E como todo bom observador que se preze, Chico sabe o bom da vida, e observou muito bem uma das coisas mais fascinantes que existem no mundo: A alma feminina. E com certeza ele compartilha neste ponto a mesma opinião que eu de que não é impossível entender as mulheres. Difícil, talvez, mas não impossível. Basta o camarada saber olhar para elas.

Um cara ordinário (no sentido literal da palavra), que trata todo e qualquer contato com um ser do sexo feminino como um martírio que acontece entre o momento do contato e o sexo, com certeza nunca vai entender mulher. Um cara que acha que mulher só serve pra exibir, pra trepar, mas na hora da diversão mesmo o fino da bola é o boteco com os amigos, não sabe o que está perdendo. Fazer o que se uns gostam de caviar e outros de feijão com arroz…?

Nesse ponto eu sou categórico em afirmar que muito homem por aí é meio viado, mas ainda não descobriu. Caras que desprezam todos os prazeres que podem ser tirados da alma feminina, da forma como elas pensam e agem.

E o que me deixa impressionado é como nas entrevistas do cara (que é super tímido, motivo pelo qual a deusa Elis Regina desistiu de gravar com ele) ele comenta das músicas que ele escreveu no eu lírico feminino com uma puta duma naturalidade. Fala rindo, usando gírias… É como se tudo aquilo pra ele fosse óbvio. Sempre com aquela cara de cafajeste e a voz de taquara rachada que lhe é peculiar (porque ele como cantor é um ótimo compositor, apesar de ser consenso entre as mulheres que um homem daquele NÃO PRECISA saber cantar!).

Numa dessas entrevistas o repórter perguntou como ele conseguia entender tanto de mulheres, escrever músicas quase como se fosse uma. E a resposta dele foi simples e direta: “não há nada de mágico nisso. Eu só observo elas”. Simples e perfeito. Mirem-se nas mulheres, já me apropriando de parte de uma música de Seu Chico.

E é isso aí. Todos os homens completos do mundo, assim como todos os bons observadores do mundo, possuem na obra de Chico uma fonte inesgotável sobre o universo feminino. Canções como Teresinha, Olhos nos olhos, Folhetim, Essa moça tá diferente, Ela desatinou, Valsinha, Deixe a menina (puta tapa na cara da homizada ciumenta) e “O meu amor”, a preferida da minha mulher. A mulher. minha linda loira de sorriso mais lindo do vérsulo inteiro, e também fãzaça de Chico Buarque.

Interessante como essa música é irônica. Ao ler pela primeira vez você acha que se trata de uma mulher se esbaldando em elogios por um cara super bom de cama e carinhoso… depois descobre que a música foi composta para um musical, e que na verdade são DUAS mulheres brigando por um cafajeste!

Como todo bom observador, Chico sabe que o mundo é irônico.

Deixo a letra para meditação.

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh’alma se sentir beijada

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que me deixa maluca, quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba mal feita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios, de me beijar os seios
Me beijar o ventre e me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo como se o meu corpo
Fosse a sua casa

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

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Música – O mundo é um moinho, A.K.A. Amizade

Quem me conhece sabe que não gosto da cultura carioca. Não tenho a menor paciência pro sotaque chiado deles, pra porra da cidade maravilhosa (que não é lá tudo isso), pro pão de açúcar (que é só um morro), pro cristo redentor (que é pequenininho e nem é tão bonito assim), pra intimidade em demasia (que me soa falsa demais), pra “malandragem” da qual a cariocada se orgulha (só faltava canonizar Lampião) e, principalmente, pra estratégia da Globo (a imperatriz da caverna de platão versão LED e tela plana) de identificar a cultura nacional com aquela coisa da classe média do Leblon, bem a la novelas das 8 xexelentas.

Uma vez comentei com um amigo que se eu fizesse um ranking das cidades que mais gostei de visitar, levando em conta a tabela do campeonato Brasileiro, a briga pelo topo seria entre Belo Horizonte e Porto Alegre. São paulo ficaria no segundo pelotão brigando por uma vaga na Libertadores, juntamente com Brasília (minha cidade natal), Curitiba disputaria a copa sul-americana, enquanto Salvador e Rio de Janeiro dividiriam acirradamente a lanterna, conseguindo surpreendentemente ficar atrás de Goiânia, que ficaria sofrendo pra não cair pra zona de rebaixamento.

E por isso mesmo tenho grande admiração por dois caras que me fazem ter menos nojinho da cultura carioca (talvez porque eu nao os veja como cariocas, mas como cidadãos que falam a todos os brasileiros). O primeiro deles é Mestre Chico Buarque, e o segundo é Mestre Cartola.

Já vi em algum lugar que Cartola e Chico Buarque são os opostos de dois mundos. Chico é filho de família rica e intelectual, enquanto Cartola sempre foi do “povão”, morou na Rocinha, foi um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira, passou muita barra na vida e demorou pra alcançar reconhecimento, o que nem sempre se traduziu em grana e vida melhor.

Mas o objetivo deste post não é discutir a obra desses dois mestres, e sim lembrar de um grande amigo, do qual sinto saudades imensas: Mestre Donnie César, autor do blog “moinho labirinto”, mega blog de reflexões, bem parecido com este, mas escrito por alguém que possui mais cultura do que eu.

Qualquer ser vivente intelectualmente considerável e que não tenha passado metade de sua vida em suspensão criogênica conhece a música “o mundo é um moinho”. Reza a lenda que ela foi escrita numa das noites em claro passadas por Mestre Cartola depois que descobriu que sua filha estava entrando “na vida”, ou, em linguagem menos de época para os que não tem mais de 20 anos, se prostituindo.

A letra parece uma navalha cortando as entranhas. É triste, fatalista, mas ao mesmo tempo é bela. Nota-se nitidamente o amor de quem canta para com a pessoa de quem se canta. Pura arte “vintage”, urbana e ao mesmo tempo refinada. Totalmente a cara de Mestre Donnie César – que eu sei que também é fã de Cartola.

Então fica a dica do blog (o link já foi postado acima), o recado de saudades imensas pra você, Donnie, sua puta gorda e feia, e, por fim, a letra desta bela música.

E só pra lembrar: Ninguém escapa do moinho.

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Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção querida
Embora saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.

Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés

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Vento, A.K.A. Libriano

“O vento sopra onde quer. Ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do Espírito”

Evangelho de João, capítulo 3, versículo 8

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